Em 20 de outubro se comemora o Dia da Filantropia, uma conquista da mobilização do Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (Fonif) para promover a valorização dessa área fundamental para a sociedade. Há anos envolvido em ações sociais com o objetivo de transformar positivamente a vida das pessoas, Pe. Carlos Fritzen, SJ, coordenador geral da Federação Internacional Fé e Alegria, conta, a seguir, um pouco sobre sua trajetória, sua ligação com o serviço aos mais vulneráveis e os desafios da Federação e das ações filantrópicas no mundo de hoje:
Conte um pouco da sua história.
Nasci em Campinas das Missões, no Rio Grande do Sul. Vivi nesse contexto rural em meio a cooperativas organizadas por sindicatos agrícolas e de um ambiente em que as relações aconteciam na igreja, na roça, na família, no futebol e na catequese. Tudo se coordenava ou se relacionava nas agendas que nós tínhamos como rotina, mas foi aí que eu pude formar mais raízes da cultura dessa região, que marcou todas as outras etapas da minha vida.
Os pequenos agricultores tentavam combinar o cotidiano com o estudo, que, muitas vezes, era difícil. Por isso, parei de estudar nos anos 80, ainda no ensino fundamental. Mais tarde, em 1982, retomei os estudos, fui para Brasília (DF) para continuá-los em uma escola pública, e, a partir daí, entrei em um processo para ingressar na Companhia de Jesus nos anos de 1985 e 1986.
Como foi sua trajetória acadêmica?
Em meu percurso acadêmico, sempre trabalhei mais na área social, no cooperativismo de trabalhadores rurais agrícolas. Fiz também estudos técnicos de contabilidade, além da formação normal dos jesuítas em Filosofia e Teologia.
Depois, fui mais direcionado à área de educação, tecnologia e gestão do terceiro setor, e aí foi se configurando um pouco da base de trabalho e estudo que resultou nas pesquisas de mestrado e doutorado. As especializações sempre foram intermediárias para aprofundar todos esses temas de trabalho e compromisso social, no enfoque também da filantropia.
A formação acadêmica, o estudo e a pesquisa são condições para fazer um trabalho em profundidade, para ações mais efetivas e mais transformadoras. A área filantrópica precisa necessariamente ter pesquisas, fundamentações e também investigações do impacto dos trabalhos realizados.
É necessário confirmar que a pesquisa é importante e que ela qualifica mais e mais a possibilidade de fazer um trabalho realmente eficiente e com projeção de formar cidadãos e cidadãs com autonomia e capacidade de consciência crítica.
O que levou o senhor a dedicar-se à filantropia?
A motivação de fundo sempre foi o cuidado com o outro. Sou profundamente convencido e apaixonado pelas causas e pela transformação das pessoas por meio da educação. Sempre me interessei em transformar contextos para construir um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, e isso marcou também esse caminho. Essa linha de trabalho é fortalecer uma filantropia que vai para além do que ela já foi há algumas décadas, que não é caridade: filantropia é ajudar, é colaborar com uma política pública, uma política social. É necessário ter complementaridade com as políticas públicas, muitas vezes fazendo que essa missão filantrópica chegue em lugares que não têm assistência.
Qual é a relação entre a prática da filantropia e a espiritualidade inaciana?
Eu diria inicialmente que está diretamente relacionado com atuar ou trabalhar discernindo as ações, discernindo qual é a melhor resposta em cada contexto social para ser assertivo. A espiritualidade inaciana é uma dessas ferramentas para auxiliar as ações filantrópicas, sempre com o compromisso de promover a justiça e o comprometimento de sermos também contemplativos na ação.
Nas várias etapas da minha história, isso tem me marcado porque vem junto com o caminhar com essa população, caminhar com os que mais necessitam, e a partir daí tentar também ajudá-los, tentar ajudar com ações transformadoras. A filantropia que transforma, não que dá assistência e caridade, é uma ação sempre nesse viés da transformação pessoal e social, evidentemente tendo em conta sempre o cuidado do meio ambiente, trabalhando em uma ecologia integral e olhando para que tenha justiça e igualdade para todos.
Como o senhor avalia a filantropia hoje no Brasil?
Nesse recorrido de participar, contribuir e colaborar no ecossistema filantrópico, o Brasil foi construindo e melhorando o Marco Legal para a Filantropia, por isso surgiu o Fonif (Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas), que melhorou a política e a estabeleceu de modo mais claro, mais firme, para que a sociedade civil pudesse atuar com segurança e precisão na ajuda aos que precisam. Essa prática sempre foi inclusiva com os mais vulneráveis e tem como horizonte a melhoria das políticas públicas.
Contudo, no Brasil, nós temos um longo caminho ainda para avançar nesse sentido. A gente sabe que os governos às vezes não olham da mesma forma para essa contribuição filantrópica. Entendo que a filantropia no Brasil é diferente da cultura filantrópica norte-americana, das cooperações internacionais da Europa ou de contextos africanos e asiáticos, cada lugar tem uma realidade distinta.
Por outro lado, eu me encanto quando vejo essa possibilidade de que mundialmente nós podemos nos fortalecer como uma rede de trabalho para melhorar os déficits de financiamento, a ausência de iniciativa pública ou mesmo a questão das seções filantrópicas (não só católicas, mas de outras crenças) que muitas vezes não se veem, não se conhecem e não sabem comunicar mais e melhor do que fazemos.
Conte um pouco sobre o trabalho desenvolvido pela Federação Fé e Alegria.
A relevância e a pertinência do trabalho Fé e Alegria nesses mais de 30 países, entre federados e os que estão em processo, situa-se nesses contextos mais difíceis e desafiadores em que a educação popular e a promoção social têm terreno. É uma educação, em alguns contextos, realizada onde não há políticas públicas, e em outros contextos, que atua em complementaridade com financiamentos públicos.
Fé e Alegria oferece um trabalho relevante porque mostra que essa missão possibilita que as pessoas levantem, caminhem, faz com que se transformem e transformem realidades por meio dessa educação popular.
Fé e Alegria é uma rede, mas é uma rede que atua e se relaciona com muitas outras redes educativas ou redes que levantam bandeiras de defesa dos direitos das pessoas, da questão ambiental, da questão de gênero e outros temas mais. Tem uma identidade muito forte, Fé e Alegria tem esse coração que pulsa, essa energia, essa vibração, que se destaca pelas pessoas que são apaixonadas e amam profundamente o que fazem. Isso faz toda a diferença em termos de prática educativa que vai se renovando, mas que é permanente e que já com dados de pesquisa, investigação e avaliação de impacto, vemos que muitas coisas realmente aconteceram por causa dessa estratégia da educação popular Fé e Alegria. A rede continua no esforço permanente de melhorar a sua ação e a sua prática em toda a América Latina e no mundo.
Com forte presença no Brasil e na América Latina, Fé e Alegria tem se expandido para outros continentes nos últimos anos. Qual a importância dessa expansão?
É curioso como mesmo em tempos de crise, mesmo com todo o impacto que tivemos por conta da pandemia, Fé e Alegria começou a ecoar nos últimos anos com uma ação importante em países africanos e também no Camboja, no Nepal, recentemente em conversações com outros países como Mianmar, Filipinas etc. Esse crescimento tem sido ocupado pela Companhia de Jesus, com jesuítas trabalhando nesses vários continentes. África, Ásia e América Latina estão caminhando com as pessoas como nos pedem as Preferências Apostólicas Universais: “caminhar com os mais necessitados”.
Esses atores pastoralistas, jesuítas, leigos e leigas têm entendido que uma das coisas mais fundamentais nesses países é melhorar ou promover uma educação participativa, que se construa com um processo democrático e que ajude as pessoas a se levantarem e caminharem.
No início de FyA, nas primeiras décadas de 50, 60 e 70 do século passado, falava-se muito da presença da instituição na África e na Ásia, mas isso teve seu tempo de amadurecimento. Cada região tem seu contexto social, político e econômico que possibilita mais ou menos estar ali trabalhando junto a outros setores daquela sociedade, daquela nação. Assim como o trabalho forte com populações indígenas, ribeirinhos ou contextos de países em que agora a situação está difícil, como o Haiti. Aos poucos, vamos vendo as dificuldades enormes de encontrar um trabalho nessa linha libertadora, nessa linha profunda de tentar ajudar as pessoas a caminharem, a serem atendidas nessa educação em todas as suas dimensões de desenvolvimento como seres humanos capazes de pensar, capazes de buscar a vida, capazes de contribuir com essa sociedade, com esse mundo que queremos construir mais e melhor para todos e todas.
Como essa expansão se relaciona às diretrizes da Companhia de Jesus no mundo?
A Companhia nos últimos anos, tendo como base as Preferências Apostólicas Universais, fez uma opção clara pelas ¨novas fronteiras, pelos sem voz e sem vez”. Sobretudo nessa linha de ajudar as pessoas também a encontrar Deus na vida, a viver sua fé, mas ao mesmo tempo de caminhar como população e, a partir daí, com os mais necessitados. São focos importantes, assim como a Preferência Apostólica que se relaciona com as juventudes, essa opção da Companhia faz com que surja a ação de Fé e Alegria em mais países africanos e asiáticos. Em soma a todo esse tema, vamos trabalhando com mais força, mais precisão e mais profundidade em todos os tempos.
Quais são os desafios que a filantropia enfrenta hoje no mundo?
A dificuldade que a filantropia enfrenta no mundo pode ser em parte da compreensão de que existe uma coexistência de ações filantrópicas com outras que se dizem filantrópicas, mas que não são. Então, temos todo um caminho para marcar a política da filantropia com mais precisão.
O que tem nos ajudado é justamente o intercâmbio entre países para que se possa saber, conhecer. Isso é uma coisa que avançou muito nos últimos anos, antes a informação demorava ou não chegava, já que não havia tanta informação pelas redes sociais. É verdade que temos o mundo de problemas gerado pelas fake news, mas por outro lado, nós temos uma grande possibilidade de nos conectarmos mais, de conhecer mais, e também de identificar ações ou omissões filantrópicas em diversos países.
Nós, como Federação Internacional Fé e Alegria, sempre colocamos essa questão na intenção de fortalecer comunidades, políticas públicas, ajudar a provocar, gerar e construir o caminho da transformação que tanto sonhamos. É importante sonhar com as pessoas, sonhar com as comunidades, sonhar com a população e aprender a contribuir naquilo que a gente vai encontrando e já comprovou que pode contribuir.
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